terça-feira, 14 de julho de 2009

Trechos

A Festa de Aniversário
Hélio Jorge Cordeiro
O capuz negro cobriu-lhe o rosto. Escuridão. Medo. Lembranças tomaram de assalto sua mente. “Não, não fecha a porta!”, dizia, implorando. Uma faixa de luz atravessava o pequeno quarto e terminava perto da cabeceira de sua cama. Agora trafegava dentro do camburão, numa estrada. Quase caiu quando a porta do veículo se abriu e ele foi empurrado para fora. Onde estava? Quem sabe, numa delegacia. Quartel, nem pensar. Seguiu empurrado. Para onde?
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A Professora
Raphael Montes
Ela já havia tentado o suicídio antes. Cinco vezes. Mas sempre acabava desistindo. O revólver, uma Magnum 608 oito tiros, devolvida à gaveta do esquecimento.
Vez ou outra sentia a necessidade de pegá-la novamente, de testar o seu peso, o tato frio com o ferro. Nos momentos mais íntimos, levava a arma à cabeça, o cano massageando ameaçadoramente a têmpora, sabendo que bastava puxar o gatilho para dar fim a sua existência insípida.
Apenas puxar o gatilho...
Mas então, ela pensava nos seus alunos.
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A Sangue Frio
Daniele Barizon

Alvo sob a mira, olhos nos olhos. Nunca teve dificuldade de encarar face a face quem quer que fosse, em qualquer situação. Firmeza absoluta. Certa vez, disseram-lhe que fixar a vista em outra, nestas ocasiões, traz momentos de hesitação. Não tinha esse problema. Aprendeu, desde cedo, que se os sentidos não fossem aliados, seriam sua perdição. Principal inimigo? Ninguém mais que ele próprio. Visão, audição, tato, paladar e olfato. O hábito revelara, ao longo dos anos, que a sobrevivência dependeria de não vacilar. Dominar a si mesmo, a chave para o bom desempenho.
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A Vida Por Um Deslize
Tiago Barbosa

Suor no rosto, passos acelerados, mãos abarrotadas de papéis e contas. Uniforme em transpiração. Manchado por calor e nervosismo. O sol como guia e castigo. Olhos de prontidão, focados em muros, placas, avisos. A calçada percorrida como pista. Desvios, esbarrões, pedidos de desculpas. Ultrapassagens de risco. Freadas nos desencontros. Documentos ao chão. De volta aos braços. Repostos em ordem, na desorganização da ansiedade. A adolescência não ajuda. A inexperiência, muito menos. A pressa dita o caminho. E dispensa erros, atrasos, descuidos.
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A Vingança da Mosca
Leandro Fonseca

Mr. Broot havia se instalado no centro da cozinha, onde ouvia atentamente o zumbido abafado da mosca presa dentro do copo de vidro. Endireitou os óculos no nariz adunco, sentindo uma gota de suor escorrer pela sua testa enquanto dirigia seu olhar para a mesa, depois para o copo, e conseqüentemente, para a mosca. Esta parecia suplicar. Suplicar, talvez, por sua libertação. Broot pensou que aquela mosca talvez pudesse sofrer de claustrofobia. Começou a tomar as dores do inseto, e por um repentino instante sentiu remorso de tê-lo trancafiado naquela masmorra, no qual sempre tomava seu leite quente antes de dormir.
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Almas de Carne
Kinho Vaz

Clara saiu de casa cedo. Estava péssima. Queria se enfiar num quarto escuro e deixar a sensação de morte passar. Mas não podia. Tinha que sair e viver. Mesmo que fosse para afrontar o passado. Ainda sentia a presença do marido. Um idiota manipulador de mentes. Dono de um egoísmo sem precedentes. Quando se conheceram era diferente. Fazia outra figura. Talvez para impressioná-la. Mostrava-se compreensivo, liberal, dono de um discurso cativante. Conseguiu dela o que queria. A confiança. O crédito para uma vida a dois. O tempo revelou a sua verdadeira face. Um déspota. Um falso. Um mentiroso. Um doente. Fez de Clara sua marionete. Um boneco de ventríloquo. Conduziu seus passos. Selecionou suas amizades. Direcionou seus pensamentos. Moldou a sua conduta de tal forma, que ela deixou de ser autêntica.
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Apartamento 302
Adriana Kairos

“Ele era um bom vizinho...” foi o que disseram pra polícia os condôminos do prédio na Barata Ribeiro, a respeito de Seu Inácio, do 302. “Pobre homem”, diziam alguns. “A sua vida era aquela neta.”
Depois de uma denúncia feita por vizinhos, que ouviram barulhos de luta vindos do apartamento do pobre senhor, a polícia chegou ao local e flagrou Denílson, o porteiro do prédio, com uma pistola prateada na mão, os olhos em mares e uma cara de “não fui eu”. Sobre a mesinha da sala, com a cabeça inclinada para um lado, expondo o buraco do balaço que tomou na testa, o velho Inácio. Ele ficou estendido ali até a chegada da, altamente preparada, perícia da polícia carioca, com uma toalha branca sobre a grande bunda velha e, decorando as paredes, seu sangue esguichado por toda parte. Na cena também estava Marcela, a neta do velho, com os olhos arregalados e estranhamente perdidos; trêmula e fria, vestida numa camisolinha branca transparente e sem calcinha. Considerada pelos policias a testemunha ocular, foi conduzida em estado de choque até a ambulância, para receber os primeiros atendimentos. Ficou internada até a condenação do porteiro, o que não demorou muito a acontecer.
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Carta de Reclamação, Amor e Óbito
Jana Lisboa

Querida,
Tu não sabes, mas tenho o péssimo hábito de precisar folhear um jornal para acompanhar a minha cafeína e nicotina vespertinas. Hoje, meu bem, na capa, a notícia principal era “Sai o resultado do teste de paternidade do filho de Luciana Gimenez”. Li a manchete e fui direto para o horóscopo, que é a primeira coisa gloriosamente inútil que leio, antes mesmo dessas notícias que jamais irão mudar a humanidade.
Sou rude, é verdade, mas leio o horóscopo. Quando meu signo mandou eu me preparar, pois haveria uma surpresa naquele dia, ingenuamente pensei que era porque o meu time do coração havia perdido, uma nova vitória de Michael Schumacher, a confirmação da paternidade de Mick Jaeger. Mal sabia o que encontraria nas páginas policiais, logo depois de ter resolvido triunfantemente bem as palavras-cruzadas:
“Dália Ramos Arruda, mulher, caucasiana, 24 anos, é encontrada morta em seu apartamento”.
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Como Tudo Começou
J. Miguel

Pensando bem, tudo seria bem mais fácil se eu pudesse explicar como tudo começou. Às vezes, nem nos damos conta de onde está a ponta do iceberg, o fio da meada que justifica o desenrolar dos acontecimentos. Talvez tudo quedasse mais fácil se eu fosse José de Alencar e conseguisse entender onde estão os cinco minutos responsáveis por todos os sucessos ulteriores. Não sendo, tal tarefa demonstra-se impraticável, mas prometo tentar.
Duvido que o grande escritor tivesse a mesma vontade de descrever seus Cinco Minutos vinte anos depois. Depois de vinte anos, a gente não suporta mais olhar a barriga do marido; o que eu chamava de ronronar que ele fazia ao dormir quando recém-casados, tornou-se um ronco inaceitável; o perfume que ele tanto gostava e que no começo eu até apreciava, agora deixa uma catinga insuportável nas roupas, nos lençóis, nas toalhas, no sofá – onde eu exigia que ele passasse a maior parte das noites. Lá, uma vez ou outra, trocávamos um beijo e, mesmo assim, era algo mecânico, sem sal, sem sabor: um selinho entre colegas que dividiam o mesmo teto.
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Crimes da Lua Minguante
Ronaldo Luiz Souza

A lua minguante nascera.
Torso, de longe, espreitava a mulher. Ela era delicada, de aparência meiga e simpática. Neste instante, caminhava apressada pela rua deserta, saindo do trabalho, em direção ao ponto de ônibus mais próximo.
Precisava chegar mais perto. Ela era o seu alvo.
As luzes piscantes das viaturas incomodavam tanto ao detetive quanto a multidão, que se formava fora das faixas amarelas que delimitavam a cena do crime. Odiava ser questionado por transeuntes, curiosos e, principalmente, repórteres. Desceu rapidamente do carro, exibiu seu distintivo para os guardas e ignorou a todos.
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Delírio em Preto e Branco
Josué de Oliveira Mello

São duas e quinze da manhã. A cidade dorme. Não há luzes acesas nas casas, e o silêncio chega a ser ensurdecedor. Um raio corta o céu, iluminando por um instante a entrada do Leoni’s, espelunca para a qual estou me dirigindo. Qualquer um que tenha o mínimo zelo por seu pescoço procura passar longe de lá, mas ultimamente meu pescoço não vem me preocupando muito. Além disso, o peso da Bereta no coldre em minha calça me trás alguma tranqüilidade.
Enquanto caminho em direção ao meu destino, as gotas de chuva tornam-se mais grossas e constantes. Minha jaqueta vai aos poucos se encharcando, o que não me incomoda. A chuva sempre me acalmou, me trouxe uma paz que nunca consegui explicar. Eu não procuro abrigo, deixo as gotas se chocarem contra meu rosto, sinto-as acariciarem minha pele como mulher nenhuma jamais conseguiu. Mais raios cortam o céu, espalhando luminosidade pela rua, espantando vira-latas assustados.
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ECO
André Esteves

Alguns cultuam o dinheiro. Uma carteira bem cheia, um número com muitos dígitos na conta corrente, automóveis, casas luxuosas. Caviar servido numa bandeja de cristal, motivo de uma ereção duradoura. Outros se dedicam à fama. Possuo amigas que fariam as maiores loucuras com um diretor perneta e obeso em troca de 15 minutos numa novela das nove ou, para ser mais exato, fariam as piores loucuras com o próprio avô por uma ponta em um comercial de cerveja.
Tudo envolve poder, na verdade. Dinheiro igual poder, fama igual poder. Eu tenho bastante dos três; mas o que me satisfaz mesmo, o que me faz sentir o mais poderoso e privilegiado dos homens, tem um nome pequeno e despretensioso em comparação com a sua importância: sexo.
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Frio
Denise Ravizzoni
Tenho que sair, vou acabar me atrasando. Mas, e se ele sentir muito frio? Deixo mais um cobertor. Desço correndo e coloco a coberta por perto. Ele conseguirá alcançá-la?
Peguei tudo? Minha bolsa, cadê minha bolsa? Ah, aqui. Já peguei as chaves também. Agora é só ir até o carro. Vamos lá garota, você consegue. Certo, eu sei, não quero sair e deixá-lo só. Ele pode precisar de alguma coisa. Mas tenho que ir, preciso. Supermercado, banco, abastecer o carro... Vamos, a porta está perto.
O frio é que incomoda. Sempre tenho a impressão de que ele sentirá muito, muito, muito frio. Minha presença o mantém aquecido, eu sei. Ok, vou deixar mais cobertores; coloco-os sobre ele. Mais um? Dois? Acho que dois bastam. Posso ir agora! Melhor trocar esses sapatos. Está chovendo. Vou calçar as botas marrons. São melhores para enfrentar este clima miserável, esta umidade cortante. Preocupo-me com ele. Vai ficar sozinho. Tentarei voltar logo. Não é bom deixá-lo só.
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Identidade Secreta.
Afobório

- Aaaaaaaaaahhh! Sua cadela! Puta safada. Quando colocar minhas mãos em você; vou matá-la. Aaaaaaahhh, que dor.
Gritava o homem de pijama enquanto andava pelo quarto, sem olhos e sem resposta alguma. Aos poucos o cômodo virava em cacos, nenhum abajur permaneceu inteiro. Enquanto isso, o traje do alvejado dividia com o carpete os pingos do mais medonho rubro que o escuro pode dar. Os travesseiros e a cama estavam revirados, sujos de orgasmo e rasgados com força.
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Noite Horrenda
Fabrício Romano

Tiro a roupa e entro na banheira com a água morna misturada a gotas de alfazema e óleo essencial de flor de laranjeira. Em uma noite comum isso funcionaria como um excelente relaxante natural. Mas com ele chutando a porta e berrando feito um maluco, será impossível o banho terapêutico surtir algum efeito positivo.
Quem conhece boa música com certeza já ouviu falar em Nicholas Davis. Basta ligar o rádio nas estações certas para ouvi-lo a qualquer hora do dia.
O compositor maldito ressurgiu.
A salvação do blues está de volta.
Blá blá blá.
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O Anjo Negro
Frodo Oliveira
Por que estou aqui, na minha sala, contemplando um cadáver vestido em uma camisa de força e que parece me sorrir? Será que estou ficando louca? Logo eu, que costumava tratar a loucura dos outros com doses de tranquilizantes e teorias freudianas decoradas nos bancos de universidades públicas? O que seria a loucura, afinal? Será que alguém em sã consciência poderá mesmo julgar a sanidade alheia?
Tudo começou na noite em que recapturamos a louca que havia fugido pela terceira vez do sanatório.
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O Ilustre e Imprescindível Investigador Alcebíades
Jana Lauxen

Chegou em casa satisfeito, carregando nas mãos o pesado troféu e embaixo do braço direito a caixinha azul, que guardava uma placa toda em ouro - homenagem da Prefeitura da cidade de São João do Porto ao seu mais distinto investigador.
Alcebíades era seu nome, e nos últimos 22 anos ajudara a pequena comunidade de nove mil habitantes, ao sul de Itararaguá, a manter a moral e a ordem, prendendo criminosos hostis que insistiam em perturbar a paz daquele povo tão pacato e feliz.
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O Mistério da Chave para o Real
Luiz Calcagno Fettermann

Aristóteles da Silva estava lá, morto, ninguém sabia como ou por que. Não havia testemunhas. Era um mistério cuja solução agora cabia a mim. Aquele homem que falava tanto sobre buscar a felicidade, que dizia que todos a buscavam. Tão pragmático e encantador e, aparentemente, sem inimigos, apareceu em seu apartamento, caído com as pernas abertas, de barriga pra cima, pálido, com os olhos semicerrados, a boca aberta, um fio de baba escorrendo e o peito branco desnudo, entre manuscritos sobre filosofia e biologia, imerso em um conhecimento que era agora silencioso.
Pobre homem, esse tal Aristóteles. A polícia logo encerrou o caso. Ainda lembro quando a mulher chegou para mim e disse que sabia quem o tinha matado.
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O Piano e as Mãos
Valdeci Garcia

Hoje o casarão está abandonado aos fantasmas e às ratazanas gigantes. As paredes carrancudas e cobertas de heras, as portas de madeira enrugadas, o imenso portão de ferro enferrujado, o jardim feérico e as lendas que contam sobre o local, fazem com que o transeunte supersticioso, à noite e até mesmo de dia, mude de calçada ao passar defronte dele.
Toda noite, de minha biblioteca, enquanto tento virar as páginas do meu volumoso Dostoievsky, ouço a música que vem do velho piano (que ainda está lá, no casarão, porque para muitos não é um mero instrumento musical, mas um ente amaldiçoado e que, por isto, deve ficar trancado até que os cupins dêem cabo dele). Como é possível que eu esteja ouvindo a canção que vem daquelas teclas antigas, se o músico que fazia o piano preencher o ar com suas notas musicais já não o toca? Aliás, ninguém entra no casarão há mais de quarenta anos.
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Os Olhos do Abutre
Dante Coslei

Andava à tarde pela Av. Rio Branco quando intuiu que alguém o seguia. Subitamente, girou a cabeça para trás pressentindo que segurariam seu braço. Não havia ninguém, além das centenas de rostos desconhecidos que formam o monstro disforme e imprevisível que chamamos de multidão.
Continuou caminhando, acelerou o passo. Sentia-se zonzo, seus sapatos pisavam sobre uma calçada inconsistente, o concreto nunca antes lhe aparentou ser tão abstrato.
Convencia-se de que não precisava se preocupar, muito tempo se passara desde que executou a tarefa que lhe cabia. O destino é uma força que se cumpre, mesmo que a fragilidade do arrependimento venha depois. Assim ele pensava.
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Silêncio
Sergio Chaves
– Você está aqui pra me matar, não é?
Mariane estava histérica. Acabara de despertar e sentia seu próprio sangue em sua boca.
– Está me escutando? Fale alguma coisa!
Ele continuava mudo. Não proferia nenhuma palavra ou reação. Nada.
Mariane se sentia exausta. Por quantas horas esteve desacordada? Já não fazia idéia de quanto tempo aquele homem estava ali.
Estava amarrada numa cadeira em sua sala de jantar. Hoje não havia ninguém em casa. Seu marido teve a brilhante idéia de dispensar seus empregados. Naquela noite, Mariane estava sozinha.
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Talvez Deus Ainda Esteja Por Aí
Oscar Bessi Filho

Tentei, em vão, ajeitar o corpo sob o colete. O calor de quase quarenta graus deixava a gente como que imerso numa fornalha dentro da viatura. A farda encharcada, as mãos grudando no volante, o cinto parecendo dez vezes mais pesado com lanterna, bastão, algemas, pistola. Mais uma correria, como a que recém tínhamos enfrentado, e eu poderia tirar um galão de água, caso torcesse minha roupa ao chegar em casa. O pior é que nem conseguimos pegar o desgraçado do ladrãozinho de velhotas. Subiu o morro, se enfiou no mato e já era. Só com bola de cristal. Voltamos para a viatura torcendo as mãos de raiva. A gente faz uma correria do cão, naquele calor infernal, para nada. Dureza, mas faz parte.
Tem horas que eu até entendo esses viciadinhos de merda. Ser policial é meio assim, também. Saber que a gente só se ferra, mas continua. E gosta.
- Porra isso, cara.